segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Ensaio sobre a Cegueira

Ao longo desses seis mil quinhentos e setenta dias de vida, eu aprendi bastante. Didaticamente falando, ou não. Tive muitas professoras, e ainda tenho, com as quais aprendi muito, não só em matérias escolares, mas principalmente sobre a vida. Mas, costumo sempre enfatizar que meus maiores professores sempre foram e sempre vão ser os meus pais. Cada um do seu jeito, cada um me transmitindo o que um dia meus avós os transmitiram, me transformaram numa pessoa constituída de mais coração do que qualquer outra coisa que pudesse ser. Os dois, apesar de a minha educação ser formada por eles, juntos, tinham um jeito distinto de me ensinar as coisas. Minha mãe de uma forma mais rígida, por ser o jeito dela, mas sempre com um olhar reconfortante na hora dos conselhos. Meu pai, mais grudento e carinhoso, mas com um nó na garganta e um peso no olhar na hora das broncas. Na hora de me coibir a certos atos, ou me ensinar a fazê-los, os dois também tinham um jeito diferente. Sempre que minha mãe me dizia pra fazer ou não alguma coisa eu perguntava o porquê, e na hora ela me explicava com a maior calma e amor do mundo. O meu pai, sempre teve um jeitinho meio sei lá de fazer isso. Como ele mesmo diz, ele sempre me "empurrou no abismo", e continua empurrando, diga-se de passagem. A expressão quer dizer que ele sempre deixou mensagens soltas no ar, em vez de me explicar o que elas queriam dizer, deixava que eu procurasse o entendimento sozinha. Isso me fazia pensar e pensar mais sobre o assunto, de forma que mesmo descobrindo o que ele queria dizer com aquilo, eu continuava pensando nele. As duas formas, foram muito eficazes. Numa dessas de me empurrar no abismo, uma vez ele empurrou tão forte, que nunca mais eu parei de cair. Alguns assuntos nos quais ele me inseria, me deixaram até hoje meio indignada, de forma que às vezes eu não consigo encontrar respostas pra certas (muitas ou quase todas) as perguntas. Uma vez estávamos na praia: eu, ele e mais uma amiga minha que de tão amiga virou quase filha dele. Eu devia ter uns doze ou treze anos, e nessa época, geralmente as meninas ficam numa fase de transição criança-adolescente que incomoda muito, e que faz fechar os olhos e o coração pra muitas coisas que não podemos parar nunca de enxergar. Bom, a lembrança é vaga, mas acordei pensando nela hoje, e tentei buscar indícios pra lembrar do dia como um todo. Se não me falha a memória, nós duas falamos alguma besteira perto dele que o fez pensar, e tomar a atitude de fazer o que fez. Nós chegamos na praia, costumávamos ir cedo. Eram mais ou menos oito horas da manhã de um sábado ensolarado. Não tinha chegado ninguém ainda, dos que ficavam com a gente, então ele pegou a brecha e aproveitou a oportunidade. Levou nós duas pra beira do mar, e nos sentamos, os três. Ele começou a contextualizar um assunto que me deixou totalmente saturada, ele discorria sobre desigualdade. Não social, mas desigualdade na forma genérica. E ele misturou uma coisa com a outra, mandando a gente reparar em cada coisa que existia na praia. Como o mar era bonito, como a linha do horizonte era irrefutavelmente reta sem nenhum defeito, como a areia era confortável, como as pessoas eram diferentes, e como essas diferenças eram belas. E ele começou a falar das pessoas que não têm capacidade pra enxergar essas diferenças. Começou a falar sobre os cegos. Sobre como era injusto nós conseguirmos enxergar aquilo tudo, e ainda conseguir procurar algum motivo para reclamar, de qualquer coisa que seja. Depois do mini-discurso, ele fez um 'exercício' com as duas. Mandou-nos fechar os olhos, e ficar cinco minutos de olhos fechados. Disse que era pra sentirmos como eles se sentem. Foi me dando um nervoso, quando me dei conta de que não conseguia enxergar as cores, não enxergava as formas. Podia ouvir tudo, o barulho do mar, a risada das crianças, as pessoas correndo na areia.. e eu não podia enxergar nada. Foram os cinco minutos mais incapazes de toda minha vida. Mas por outro lado, os que me mais me fizeram pensar. A partir daquele dia a minha visão sobre as coisas mudou um pouco, me vi mais compreensiva em alguns aspectos. Só que, de uns tempos pra cá, meus pensamentos sobre esse dia se recaíram sobre outra perspectiva. A cegueira por vezes, é algo voluntário. Não a cegueira na forma da doença. Há muitos nesse mundo que preferem fingir-se de cegos. É bem mais confortável, nas circunstâncias atuais, fechar os olhos, ao invés de querer enxergar todos os problemas pelos quais temos passado. Eu confesso, já pensei em fazer isso. São tantos erros, tantas decepções, tantos absurdos. A visão é uma dádiva, uma coisa privilegiada, é claro. Agradeço todos os dias por ter meus sentidos perfeitos. Só que vendo tanta coisa, dá mesmo vontade de fechar os olhos e fingir que tudo é belo. Quando você não enxerga nada, você desenha um mundo que é só seu. Ele é intocável, imutável. Ainda mais, por aqueles que nunca tiveram a oportunidade de enxergar nenhum dia sequer. Cada um monta o seu mundo, com as cores mais marcantes, as pessoas mais bonitas, os problemas mais superficiais. Os muros não são pichados. As crianças pobres, não andam com roupas rasgadas feito panos de chão. As ruas não são repletas de lixo, e as favelas, nem existem. É claro que os que não enxergam, deixam de ser realistas. Não são utópicos a ponto de não saberem do que se passa. Mas pelo menos, conseguem usufruir do conforto que é não ter que olhar pra toda essa burrada e enxergar, com todas as cores,todas as letras, todas as dores, todos os males. Elas ainda podem, dentro da visão delas, sonhar com um mundo melhor. Não se torna tão impossível enxergar uma melhora, quando seus olhos não te deixam ver. Ou, quando você prefere não enxergar. Por mais que seja necessário se conformar com toda essa dor pra conseguir sobreviver nesse mundo que infelizmente é real, perante certas situações, dá vontade apenas de fechar os olhos pro problema, de tão difícil e complexa que se torna a solução. É uma atitude mais que covarde, eu sei. Muito covarde mesmo. Mas desanima. Desanima sério ver que um em um milhão se preocupa com tudo isso. Vale ressaltar que isso não é um discurso moralista, nem um apelo, nem um pedido, nem uma carta ao presidente. Talvez um texto qualquer. Ou um desabafo, quem sabe. Queria poder usar dessa dádiva só pra enxergar as coisas boas. E também não teria graça. Só se sabe o que é bom quando conhece o ruim. Ou não. Nesse caso não. Queria eu às vezes, poder escolher ter visão seletiva. Mas talvez fosse ruim, porque eu ia escutar demais. Ia sentir demais. Mais do que já sou compelida a sentir. Os sentidos outros iam ser mais aguçados, e não teria tanta eficácia quanto o esperado. Eu admito que não tenho vontade de ser uma pessoa fria. A visão, ela é vista de vários pontos. Não é só enxergar no sentido figurado que cito nesse texto. Cada um tem uma maneira de fazê-lo. Mas às vezes os meus olhos me machucam tanto.. por vezes sinto muito orgulho deles. Por conseguir fazer pelas pessoas o que alguns não fazem - uns porque não querem, uns simplesmente pela falta de sensibilidade. E geralmente as pessoas me dizem, que eu tenho uma forma diferente de ver as coisas. Com clareza, com paixão. Pode ser que eu tenha sim, depois desse dia em que tive que, mesmo que por curto tempo, ficar sem enxergar algumas das coisas belas da vida. Mas na beira da praia, é mole. Queria ver ao pé de uma favela. Ou em um país muito pobre, em meio a uma família passando fome. Talvez eu pedisse a meu pai para me deixar ficar mais tempo de olhos fechados. Mas essa não é a realidade, o meu mundo não é suficiente pra suprir as dificuldades que o mundo real oferece. Talvez seja melhor tomar a atitude, mesmo que sendo dolorosa, de abrir os olhos, e encará-lo de frente. Dói, machuca, decepciona. Mas faz aprender, mudar. Faz a gente dar valor pro nosso mundo, dar valor pra nossa falta de problemas. Porque por mais que todo mundo os tenha, é claro que existe uma certa diferença entre eles. Enquanto pra uns o maior problema do mundo é a prova que vai ser feita daqui a duas semanas, para outros o problema é abrir o armário da cozinha e não ter nenhuma comida para o jantar do dia seguinte. E o que temos a fazer? Não adianta ficar fingindo que tudo está correndo da mais perfeita maneira, porque seria total hipocrisia de nossa parte. A verdade é que, a cada dia, a situação fica pior. E a cada dia, dá menos vontade de enxergar, e ao mesmo tempo, precisamos fazê-lo. E é por isso que, eu não paro de cair nesse abismo sem fim... Não consigo achar nenhum tipo de resposta pra pelo menos metade das perguntas que tenho em mim, e transformo esse abismo numa cegueira infindável.. Por mais que estejamos todos de olhos abertos, parece que as pessoas estão dormindo. Todas. Me dá vontade às vezes de deitar nesse travesseiro gigante que elas dormem, e fazer o mesmo simples papel de mais uma vivendo porque tem que viver. Mas não, eu não consigo. Meus olhos doentes não me deixam enxergar tudo da mesma maneira. Infeliz ou felizmente, não. Na verdade, gosto deles. Eles cuidam do meu coração. Sabe quando dizem que os olhos são a janela da alma? Então, é a mais pura verdade. Eles expressam o que a alma quer dizer, e não pode. Conseguem ao mesmo tempo, ver toda a dor que se passa pelo mundo, e ainda assim, enxergar daqui a alguns anos, quando as pessoas vão acordar e se tocar de que estamos perdendo tempo deixando de ver muitas coisas das quais deveríamos, e com certeza todas elas contribuirão pra uma melhora do mundo de uma forma geral. É uma visão literalmente futurista. Bem sonhadora. Meus olhos me fazem assumir dois personagens nessa vida: uma que consegue manter os pés no chão e tenta fazer o máximo que pode pra ajudar de seu jeito, e a outra, que por mais que não deixe de enxergar a realidade, consegue sonhar com um dia em que todas as outras pessoas tenham a oportunidade de ganhar um par de lentes, como o que ela ganhou, pra enxergar o que ela enxerga, sonhar o que ela sonha, ouvir o que ela ouve. E esse presente, sem dúvidas, foi o melhor que ela já pode ter ganho. A oportunidade de enxergar esse mundo com um tipo de cegueira que, por incrível que pareça, lhe torna alguém com pensamentos bons, positivos, e o melhor de tudo: esperançosos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Preferencialmente Essencial

Quando ouvimos falar na palavra essência, em seu sentido próprio, entendemos como o núcleo de algum determinado assunto. A essência é o assunto, propriamente dito, em sua origem de importância. Até quando nos referimos à essência de um perfume, esta significa sua marca principal, seu núcleo na forma dita sobre a sua essência em si. E na verdade, muitas das vezes, não damos importância ao que realmente existe de essencial. O núcleo e a principalidade das coisas às vezes tornam-se superficiais em detrimento do que deveriam, e acabam tomando uma forma não tão importante, quando na verdade, é a única coisa que de verdade importa. O essencial da vida, não é quanto você ganha, quanto você perde, quanto você chora. O que realmente importa, é o quanto você se alegra com as coisas que faz com quanto você ganha, os benefícios que suas perdas te trazem, a quantidade de coisas que você aprende com as suas lágrimas. O essencial está escondido por trás do aprendizado. Por trás da felicidade que ele te traz, e por trás de todas as coisas que ele te proporciona. Os fatos que nos ocorrem, em sua superficialidade, enchem nossa cabeça com coisas que pouco ou nada nos acrescentam, e tomam nosso tempo, um tempo que poderíamos estar aprendendo mais e mais, de forma a nos deixar indignados, tristes, cabisbaixos. E o essencial, com certeza não é esse. O que realmente importa não é quanto tempo você fica preso no trânsito, no caminho do trabalho, e sim a boa vontade que você tem de se deslocar todos os dias do recanto do seu lar, pra ir ganhar a vida de uma forma digna. Não importa quão seja difícil a sua faculdade, e se suas notas não vão bem, o essencial é que você todos os dias acorda com mais vontade de melhorar, e aprender. Eu sei, essas duas últimas frases podem parecer um pouco hipócritas. Mas sério, não deveriam. Se colocássemos na ponta do lápis quanto tempo passamos tentando arranjar uma culpa pra colocar em alguém quando alguma coisa de ruim acontece, ficaríamos com ódio de nós mesmos. Porque a culpa, ela não é essencial. Pra que nos isentarmos dela e simplesmente depositar nossa raiva/tristeza/insatisfação em alguma coisa ou em alguém que não a tenha, realmente? E fazemos isso. Infelizmente, acontece em períodos diários. Ao invés de tirarmos proveito do ocorrido e pegarmos pra nós o que ele tem de bom, nos preocupamos em achar desesperadamente alguém que tenha culpa, porque é bem mais cômodo fechar a cara para o problema, do que remar contra a maré e tentar achar o lado bom da coisa, pra tentar, a partir daí, procurar a essência que forma o acontecimento. Mais uma vez, é mole na teoria, mas na prática não é bem por aí. Somos humanos, feitos de carne, osso, e apesar de coração, há uma série de malícias que aprendemos com o tempo, que nos protegem (ou pelo menos achamos assim) de certas coisas, usamos os nossos erros como uma capa protetora para que estes não aconteçam mais, e com o tempo, começamos a desconfiar demais das coisas, e ao contrário do que deveria acontecer, nos vemos saturados de certas coisas e estas nos machucam com mais facildade do que antigamente. A essência do aprendizado se perde, o essencial se torna superficial, e mais uma vez, perdemos nosso tempo com o que não importa na verdade. Devemos a cada dia, encarar os fatos com outros olhos, olhando de fora, como se pudéssemos deixar o nosso corpo e subir a um nível onde possamos ser imparciais o suficiente pra enxergar as coisas com clareza. A essencialidade é por fim, vista, e daí aproveitamos o que aquilo tem de bom pra nos oferecer. Eu sei, é um emaranhado de informações, mas não é tão difícil quanto parece. Afinal, o essencial não é a dificuldade, mas sim os artifícios que você usa pra entender que a dificuldade em si, é só mais um obstáculo, como outro qualquer, e que você tem capacidade suficiente para passar por ele, com a cabeça erguida, enxergando sempre o melhor que a essência das coisas que, sendo boas ou ruins, têm a lhe oferecer.